O Pantanal sul-mato-grossense, principalmente nas regiões próximas da divisa com Mato Grosso, é um perfeito exemplo do que se pode chamar de “Brasil profundo”. É uma região onde tempo, espaço e homem se conectam de forma muito peculiar, permeados pela natureza com a fluidez das águas, a vida própria das plantas e a dinâmica única dos bichos. O homem pantaneiro habita quase que outra dimensão no trato com essas forças, produzindo nele uma relação própria com a cultura, o trabalho, os hábitos, a comida, o vestuário…
Neste cenário, a pantaneira Cirlene Brandão de Moraes, hoje com 49 anos, ajudava o marido em muitos afazeres rústicos nas fazendas da região, completamente imersa na vida campeira. A proximidade com os peixes e o talento para cozinhar de alguma forma indicavam uma conexão que extrapolava a vastidão da maior planície alagável do mundo. Em 2003, deixou de trabalhar como empregada nas fazendas e levou para Corumbá-MS, a capital do Pantanal, essa mistura que só poderia resultar em sabores únicos.
Na cidade, começou a fazer salgados para vender de porta em porta e, por vários anos, preparava marmitas na própria casa para um pequeno círculo de conhecidos. Com a intensa atividade cultural de Corumbá, aos poucos começou a participar dos inúmeros eventos ao longo do ano, vendendo pratos tipicamente pantaneiros em barraquinhas de comida, como arroz carreteiro, paçoca de carne seca, macarrão de comitiva, entre outros. Carnaval, Festival América do Sul, Arraial do Banho de São João são apenas alguns exemplos.
Enquanto as marmitas e os pratos nas festas culturais ganhavam cada vez mais consumidores, também as redes sociais explodiam em popularidade e oportunidades para empreendedores. Já no final de 2013, Cirlene resolveu experimentar a força dessas novas ferramentas e ofereceu em um grupo do Facebook o pintado na moranga, prato que consiste evidentemente de um estrogonofe de pintado envolvido por uma abóbora moranga prestes a derreter.
Os pedidos explodiram e foi difícil dar conta de tanto trabalho. Em dezembro daquele ano, o caminho só poderia ser abrir o próprio restaurante, o Kitut’s de Cirlene, improvisado na varanda de casa, no bairro Popular Nova, relativamente distante do centro da “Cidade Branca”. “Era um desespero quando chovia, pois minha área coberta era muito pequena e, logo, o local inteiro tornou-se insuficiente. Foi num desses dias que o gerente de um banco de crédito que estava no estabelecimento me fez a proposta e, a partir disso, consegui meu primeiro empréstimo para ampliar a área coberta do restaurante”, conta.
Com a bagagem de uma vida inteira conectada à vasta natureza do Pantanal, Cirlene adaptou pratos já comuns da culinária local e, assim, a carne seca na moranga deu lugar ao pintado e o famoso pintado ao urucum se tornou pintado com vinagrete e banana da terra, para citar apenas os mais populares. Como cortesia na entrada, ela serve um caldo de pintado, ainda mais saboroso do que o já consagrado caldo de piranha.
Para alcançar a desejada excelência, ela buscou todas as qualificações possíveis, tanto na área da gastronomia quanto na gestão do negócio. Participou de cursos com chefs renomados, de festivais gastronômicos e de treinamentos oferecidos por órgãos de fomento ao empreendedorismo. Sendo microempreendedora individual, não demorou a se tornar pequena empresária. E para garantir a qualidade dos pratos, compra toda a sua matéria-prima em uma quitanda no próprio bairro, onde conhece a procedência de cada produto.
Os sabores quase ‘obscenos’ do Kitut’s de Cirlene, inclusive com um cardápio bastante flexível, há muito extrapolaram os limites do bairro e da cidade, tornando o restaurante uma referência regional em comida típica pantaneira. “Depois dos clientes de outros bairros e do centro, passei a receber pessoas de Ladário, de Miranda e das cidades vizinhas da Bolívia, além de turistas que vêm com indicação de moradores locais”, relata. Assim, sem perder a intrínseca ligação com o mato, Cirlene não se cansa de contar sua história em revistas e TVs como pantaneira que acreditou na união do talento e da incansável capacitação para inovar.
Texto: Fernanda Oliveira para a campanha do Movimento Compre do Pequeno – Sebrae.
Texto original publicado no Campo Grande News.